sexta-feira, 4 de março de 2011

DESPOJAMENTO


Não conheceu pai nem mãe. Vivia com dois primos, um que mal se mexia, com o corpo enfezado, convulsivo e babado, com a boca torcida de sons indistintos, outro que saía muito cedo e chegava muito tarde, bebia mais que comia e adormecia invariavelmente de cigarro na boca.

Os dias passava-os na rua, na companhia de gente desenraizada e selvagem. O céu era melhor cobertor que as paredes arruinadas da casa em que vivia. Corria e roubava, fumava, bebia e esmurrava. Foi-se habituando à solidão da mesma forma que se habituou à falta de higiene e às dores de dentes, ao frio e à pancadaria.

Mesmo assim tinha a capacidade de amar intacta e transbordante, como um sentimento que se hipertrofia pela ausência de outros. Amava bichos, pessoas e pedras, com a ternura e a docilidade do despojamento total, da entrega sem esperança. Corria-lhe nas veias a depuração de um olhar tão pesado pela vida, que as raras migalhas de beleza inundavam de luz o seu mundo.

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